A vida, às vezes, nos reserva algumas surpresas que somente Deus poderia explicar. O sofrimento chega como um relâmpago, e as alegrias vão retornando quando se tem família e amigos que te apoiam. Essa é a minha história, e ela é real.

Eu nasci no município de Resplendor, num lugar conhecido como Vila Ação Social, em um ambiente de grande pobreza, sendo eu o sétimo de nove irmãos, filhos do casal Maria da Penha e Jenuíno, trabalhadores rurais que, então, faziam bicos em fazenda próximas, capinando, plantando arroz ou colhendo milho. Trabalho que raramente rendia o suficiente para subsistência, logo a fome estava sempre presente na vida da família.

Era comum ter apenas canjiquinha para cozinhar e nem mesmo sal, que era recolhido dos cochos dos animais um pouco de sal-mineral para melhorar o sabor. Outras vezes nem canjiquinha tinha na panela e, para enganar a fome, a família ia dormir mais cedo.

Para aliviar as necessidades básicas, minha mãe criava algumas poucas galinhas e esporadicamente levava até a cidade para vender. Eram duas horas de ônibus até Resplendor e a venda nem sempre acontecia, quando então tinham de voltar com a mercadoria e sem dinheiro algum, muitas vezes tendo até de pedir esmolas para ter o que comer e como voltar para casa. Nessas ocasiões, por vezes, vi minha mãe chorar por não ter nada para trazer para a família que ficou em casa.

Dessas galinhas, a família, em alguns domingos e ocasiões especiais, abatia uma, das pequenas, para a própria alimentação, o que dividido pelos 11 membros da família, sumia, mal podendo todos desfrutarem do sabor. Ainda havia ocasiões em que chegava visita e, então, a preferência era para os de fora, e nem mesmo nesse dia esperado podia saborear a iguaria. Então eu sonhava: “Um dia ainda poderei comprar e comer uma galinha inteira”.

Para as crianças, o trabalho era uma necessidade desde muito cedo para todos, pois a grande luta era pela sobrevivência, não restando espaço para infância e brincadeiras.
Assim nasci e cresci, desde cedo sofrendo as privações impostas pela vida dura. Em minhas primeiras lembranças sempre vem a dificuldade e até a humilhação de, por vezes, ter que esmolar para ter o mínimo necessário para sobreviver, além das palavras fortes e preconceituosas que era obrigado a ouvir pelas circunstâncias que vivia.

No entanto, esse sentimento não podia nem mesmo ser compartilhado, pois o que vinha de retorno era negativo e desanimador, e sempre carregado de muito preconceito, como se jamais pudesse sair daquelas condições. Na idade escolar, eu sentia ainda mais o preconceito e desprezo dos outros e, até mesmo, a professora foi enfática em dizer que eu jamais teria condições de ser alguém na vida por ser uma pessoa muito pobre. Por muitas vezes, não queria sair de casa e participar de festinhas, reuniões devido ao preconceito que pesava sobre mim.

Mesmo vivendo essa realidade, eu sentia que minha vida não era aquela, como se estivesse deslocado. Estava fora do lugar destinado a mim, e tinha dentro de mim essa certeza: de que poderia mudar o rumo e a vida de todos. Cada vez que eu saía para os afazeres da roça, era um verdadeiro martírio, pois sentia que não era aquele o meu destino.

Assim, aos quatorze anos e com a certeza de que poderia fazer a diferença em algum lugar maior, resolvi me mudar para o Espírito Santo. Viajei em um pau-de-arara até Resplendor. Estava chovendo muito e o pau-de-arara quase virou, causando um grande acidente. De Resplendor, embarquei no trem para Vitória-ES, indo inicialmente morar na casa de uma irmã, que, casada, foi morar em um bairro na periferia da Região Metropolitana.

Na ocasião, comentei com um primo, que iria para Vitória e que um dia ainda sairia no jornal do Espírito Santo, no que ouvi de volta: “Só se for na página policial”. Durante a viagem, chorei com a lembrança das palavras que tinha escutado de pessoas como a professora: “Você vai para lá como os outros, virar bandido, porque pobre na cidade grande só vira bandido”.

No Espírito Santo

Era o início de uma nova etapa da vida, mas não cessaram as dificuldades. Confirmando as previsões tenebrosas de todos, o sofrimento não parou. Vendi picolé e jornal, e todo o dinheiro que recebia enviava para meu pai, para ajudar no sustento da família. Até que comecei a trabalhar em uma empresa terceirizada da Cesan (Companhia Espírito Santense de Saneamento).

Apesar de empregado, a vida não era fácil: o salário era muito baixo e o trabalho desgastante. Andava incontáveis quilômetros, pois tinha que entregar uma média de três mil talões de conta de água, debaixo de chuva ou sol, correndo de cachorros ou de donos de casas que não aceitavam a conta; muitas vezes, sem dinheiro para comer e até mesmo para o ônibus de volta.

Então, me sentava no meio-fio e chorava em desespero por não visualizar soluções nem o futuro que tanto buscava. Mesmo nesses momentos, ainda encontrava boas almas que as vezes me ofereciam um lanche e, até mesmo, o almoço. São pessoas que guardo na memória até hoje, com muito carinho e gratidão.

Passado um tempo, mesmo ganhando muito pouco, dividindo o dinheiro com a família que ficara em Resplendor, e com a irmã com quem morava, para ajudar nas despesas da casa, resolvi trazer outra irmã, a fim que ela estudasse e tivesse mais oportunidade. Então, o pouco dinheiro passou a ser dividido por três: para a casa, para os pais e, agora, também para a irmã poder estudar.

Apesar de tudo, ainda consegui continuar meu próprio estudo e terminar o segundo grau, o que teve de ser tardio, pois os pais achavam o estudo desnecessário, uma vez que eles mesmos eram analfabetos e nunca tinham estudado. Mas, quando parecia que a vida poderia mudar, um fato novo desabou como uma bomba para destruir as esperanças: minha avó faleceu na cidade de Governador Valadares-MG e, imediatamente, fui para Resplendor onde seria o sepultamento.

Mas, chegando na cidade, veio a outra terrível notícia: minha mãe e minha irmã estavam em uma ambulância a caminho de Governador Valadares, para buscar o corpo, quando o carro caiu de um viaduto da estrada, com mais de doze metros de altura. No acidente, a mãe ficou gravemente ferida e veio a falecer nove dias depois; e a irmã ficou com sequelas que limitam a locomoção e a obriga a usar uma cadeira de rodas. Assim, as dificuldades da família triplicaram. Sem a mãe e com um membro cadeirante, a renda diminuiu e as despesas aumentaram.

No entanto, mesmo com a perda trágica da minha mãe e todos os problemas advindos das sequelas na irmã, jamais perdi a fé de que algo melhor estava por vir. Foi com essa confiança no futuro que resolvi trazer para Vitória também minhas irmãs caçulas. Nessa ocasião, o salário recebido era muito baixo; mesmo assim, era dividido entre minha irmã, pagando a moradia, uma parte enviada para meu pai, agora viúvo, que continuava no interior, e outra parte para as outras duas irmãs estudarem, num verdadeiro milagre da multiplicação.

Haviam dias em que nem a passagem para a escola tinha. Era quando contava com a ajuda de uma amiga, Cléria, que, reconhecendo a boa causa, arrumava o valor necessário. A grande preocupação com as irmãs é que elas estudassem e, para isso, eu abria mão de qualquer beneficio próprio.

As dificuldades eram muitas; apesar disso, a família começou a ficar novamente reunida. Mesmo com a perda irreparável da mãe, meu pai, Sr. Jenuíno, que tinha ficado em Resplendor, também veio para Vitória. Moravam todos em um barraco de tábua de dois cômodos, que em dias de chuva, molhava mais dentro do que fora.

Mas estávamos novamente juntos e o sentido de união familiar fazia com que as dificuldades fossem abrandadas e vencidas. Ainda assim, eu sofria com a falta de recursos e muito preconceito, o que sempre mantinha minha autoestima empobrecida; porém sem perder a esperança de uma virada em sua vida.

Quando meu pai já estava em Vitória, resolvi dar início a uma nova fase: decidi sair da casa em que estava com todos e morar só. Mesmo sendo no mesmo bairro, teve logo a costumeira resistência. Meu pai, talvez mesmo por preocupação, tentou demover a ideia do filho: “Você vai quebrar a cara, vai mas volta!”. Minha resposta foi decisiva: “Não vou quebrar a cara, vou e não volto”. E, assim, comecei uma nova caminhada na vida.

Passado mais um tempo, resolvi ir para outro bairro de Cariacica: Itacibá. E a história se repetia. Meu pai, novamente, tentou me fazer desistir da ideia: “Você vai para Itacibá, mas vai quebrar a cara e voltar”. E a resposta também foi a mesma: “Eu não vou quebrar a cara nem voltar”.

O fundo do poço e a hora da virada

Eu continuava trabalhando na terceirizada da Cesan, entregando talão de conta de água, com um salário muito baixo, que mal dava para sobreviver. Aluguei um imóvel quarto e sala, que com dificuldade mobiliei para ter o mínimo necessário de conforto. Mesmo ajudando a família, a distância promoveu um isolamento. Foram três anos morando naquele minúsculo imóvel, só e passando por muitas necessidades. E, agora, sem o apoio da família.

Para piorar a situação, certo dia cheguei em casa e descobri que haviam me roubado: levaram tudo o que, com muita dificuldade, eu tinha conseguido. Foi o momento em que, realmente, me vi só e sem nada. Neste ponto, as palavras do meu pai, pareciam proféticas: “Você vai quebrar a cara e voltar”. Mas o caminho tomado não foi este; o pouco que conseguira teria de ser reconquistado e acrescentado mais.

Nesse período, quando já estava sem perspectiva de qualquer mudança que pudesse ser significativa na vida, e a ideia de desistir já não era absurda, mudei para o apartamento vizinho. Alguém que veio a ser a grande amiga, Elizabeth. Observando a tristeza e a falta de perspectiva, Elizabeth começou, com palavras e questionamentos, a provocar a mudança necessária para a virada na minha vida.

Tudo começou quando Elizabeth, notando grande descontentamento com o emprego de muitos anos, perguntou: “Antônio, o que você gosta de fazer?”. Sem precisar pensar muito respondi: “Gosto de mexer com cabelo”. Aí veio o óbvio: “Então, por que você não vira cabeleireiro?”.

Trabalhando na empresa há bastante tempo, parecia algo impensável fazer outra coisa que não fosse entregar talão de água. Mas a ideia ganhou força e resolvi fazer o curso de cabeleireiro junto com minha irmã. Mas não foi um mar-de-rosas: trabalhava o dia inteiro, andando para entregar os talões, debaixo de chuva ou de Sol e, agora, ainda fazia o curso, para onde tinha de ir com minha irmã de ônibus. Muitas vezes, tendo de passar juntos na roleta por não ter o suficiente para as passagens dos dois. Em outras ocasiões, tinha de dividir um marmitex, pois não tinha o bastante para dois.

Porém, em pouco tempo, já agregava algo mais nesta rotina do dia a dia. Agora, além de trabalhar na entrega dos talões e fazer o curso de cabeleireiro, começava a atender em casa após o expediente. As clientes já começavam a surgir e, com isso, foram vários natais e réveillons trabalhando. Naquele imóvel minúsculo, eu tinha que lavar o cabelo das clientes na pia e usar espelho do guarda-roupas. Com esse dinheiro extra, comprei um lavatório e um espelho de segunda mão e improvisei um salão no meu próprio quarto.

Assim, iniciei uma nova profissão e, em pouco tempo, o quarto improvisado já não comportava mais o trabalho, que ainda era um extra, pois eu continuava entregando talões. Nesse momento, veio mais uma prova da amizade e apreço de Elizabeth. Ela estava em um apartamento maior com seus filhos, mas vendo o que estava acontecendo com seu vizinho e amigo, propôs algo surpreendente para os dias de hoje: trocarmos de imóveis.
Isso mesmo: Elizabeth passou a ocupar, com os dois filhos, o apartamento menor e eu passei a ocupar o apartamento que tinha mais cômodos, fazendo da sala meu primeiro salão, com um pouco mais de espaço.

Mas, até mesmo esse espaço, logo ficou pequeno. E, novamente, Elizabeth intercedeu para outra mudança, alertando para a necessidade de um local mais adequado para o funcionamento de um salão. No entanto, quando ainda não tinha mudado para o novo local, sofri um novo assalto Outra vez, todos os equipamentos que, com toda a dificuldade havia adquirido, foram levados pelos bandidos.

Antônio a Antony

O assalto teve grande consequência sobre o ritmo do meu crescimento profissional, porém mesmo com mais esse golpe da vida, recomecei minha caminhada. Fui conquistando novamente o material necessário para o trabalho e aluguei um novo espaço. Já não dava mais para conciliar os trabalhos e, então, após, dezessete anos trabalhando na empresa, sem gostar do que fazia, o que tornava o labor um sofrimento à parte, enfim saí da terceirizada da Cesan.

Nascia, assim, Antony Oliver, enquanto o sofrido Antônio Oliveira, aos poucos, saía de cena. É claro que todo caminho tem suas pedras, como o caso de uma senhora que, após fazer o cabelo no salão, resolveu modificar em casa, usando produtos inadequados que acabaram por danificar seu cabelo. Ela voltou ao salão, exigindo reparação como se o ocorrido fosse pelo serviço ali executado. Tive que custear todo o novo tratamento, o que, além levar meu lucro, deixou grande prejuízo.

Mesmo assim, o salão crescia e eu, agora fazendo o que realmente gosto, tive minha ascensão profissional, com clientela crescente e fidelizada. Mas não deixei de ser grato a quem me ajudou nos tempos difíceis.

Hoje, o Salão Antony Cabeleireiro está há mais de vinte anos no mesmo local, em Itacibá. Mas ganhou notoriedade e sua clientela já extrapolou os limites do bairro e até da cidade, recebendo pessoas de vários locais.

Como forma de retribuição, faço questão de participar de diversas ações sociais, trabalhando voluntariamente, e ainda promovendo semanalmente em meu salão uma ação de transformação com uma pessoa escolhida por intermédio de cadastro na rede social. Essa pessoa, normalmente sem recursos, recebe sem nenhum custo, um tratamento completo. Essa ação já ajudou muitas mulheres, elevando a autoestima, valorizando pessoas que, através da mudança, até emprego conseguiram.

Também sou referência na área para diversas redes da mídia capixaba, tendo sido fonte de muitas matérias. O reconhecimento ao trabalho também veio de quem domina o tema. E, na edição de 2016 do Coiffeur Convention Internacional, grande evento promovido pela ECosmetcs, fui homenageado com o prêmio Top Dez, estando entre os dez melhores cabeleireiros do Brasil.

Por isso, compartilho com vocês essa história de vida, que é uma prova inconteste de que a força de vontade, a fé e, é claro, muito trabalho, aliados com a perseverança, podem mudar a vida das pessoas que passam a ser agentes de transformação da própria sociedade!

PLANTÃO CAPIXABA – A GENTE MOSTRA O ESPÍRITO SANTO! | REDAÇÃO: RODRIGO COELHO

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